Quando me mudei pra Holanda em 2007 eu sabia muito pouco do país. Se pressionado, eu citaria, sei lá, uma meia dúzia de clichês, em geral envolvendo moinhos, tamancos, diques e futebol.
Mas enfim, sem saber nem sequer como soava a melíflua língua holandesa, prestes a me mudar, fui ao Youtube pra ouvir um pouco do que me esperava.
Quando me recuperei do choque, limpei as lágrimas e pensei: "Tenho muito... muiiito... o que aprender".
Mentira, eu pensei "tô fudido". Depois eu pensei "tenho muito o que aprender".
E, cara, eu aprendi. Os clichês foram substituídos por uma compreensão cada vez maior do país (embora eu ainda esteja caminhando, sempre — a estrada da integração é comprida).

Quanto mais eu tentava entender o presente, mais eu acabava sabendo sobre o passado da Holanda. Nisso acabei descobrindo uma lista de coisas muito interessantes e curiosidades sobre a Holanda que têm um motivo histórico.
Sim, todos nós sabemos da colonização holandesa no Brasil (sabia que dá para visitar a casa do Maurício de Nassau aqui na Holanda?). Mas eu descobri diversas outras coisas interessantes que são menos populares.
Vem comigo que eu te conto.
1. Amsterdam é a capital da Holanda, mas só no nome.
Historicamente a capital dos Países Baixos sempre foi Haia, 56 quilômetros ao sul. É lá que está a sede do governo (ministérios, parlamento, senado etc), da monarquia e as embaixadas. A história da capital mudar pra Amsterdam começou quando Napoleão invadiu a região e pôs o irmão, Louis Bonaparte, como Rei da Holanda.
Louis levou o papel de, ahem, "Rei" a sério e saiu causando na Holanda. Entre outras mudanças, ele curtia ficar alterando a capital. Uma hora ele escolheu Amsterdam, chutou o conselho municipal de sua casa no Dam, transformando-a em seu "Palácio Real" (nome que mantém até hoje; sim, o Royal Palace do Dam tem esse nome por causa do irmão de Napoleão).

Acontece que antes de poder mudar de novo, ele cometeu o erro de dar uma resposta insolente pro irmão mais velho, que se preparava pra invadir a Rússia. O Napoleãozão se enfezou com a recusa do irmão menor em mobilizar tropas pra ajudar na empreitada ("Vai contra os interesses da Holanda") e chutou-o do trono.
Quando a invasão à Rússia falhou miseravelmente (Louis deve ter pensado "eu te disse", mas ficou quieto, que não era besta e já tinha levado tunda) e Napoleão viu seu império ir ruindo, Willem VI van Oranje voltou da Inglaterra, retomou a Holanda e juntou o lugar todo num reino novo em folha (do qual ele se declarou rei, Willem I der Nederlanden).
E não se deu ao trabalho de mudar a capital de volta pra Haia. Os motivos são controversos, mas alguns acreditam que foi um gesto de boa vontade com Amsterdam, que sempre foi meio do contra nos Países Baixos e brigava horrores com Haia.

Um gesto tipo, "vamos esquecer as diferenças e fazer esse novo reino" ou, como dizem as crianças no pré, "dá dedinho... tô de bem!".
De qualquer forma, a coisa ficou meio confusa até que a constituição de 1983 deixou bem claro que Amsterdam é a capital...
...Não que o resto do país concorde. O povo de Haia tira uma certa onda: "a gente diz que Amsterdam é a capital pros turistas irem lá e deixarem a gente trabalhar em paz..."
Heh, bairrismo holandês sempre me diverte... e por falar em bairrismo...
2. A Bélgica já foi parte da Holanda.
Então, o Reino dos Países Baixos criado pelo Willem I, ex-Willem VI (contei a história ali em cima), incluía o que é hoje a Bélgica.
Até 1830... daí os belgas se revoltaram e conquistaram sua liberdade. "Conquistaram sua liberdade" se um belga te contar a história; quando um holandês me contou foi um tico diferente: "a gente concordou e deixou eles irem"...
Sei, "concordou", é? Sim, concordou depois de calorosas conversas envolvendo argumentos em forma de balas de canhão voadoras. Os holandeses só foram reconhecer que tiveram o traseiro chutado nove anos depois, em 1839.
E foi assim, amigos, que a Bélgica deixou de ser um País Baixo. Quer dizer, deixaram mais ou menos, né?...

Mas a treta com a Bélgica não foi a única que os holandeses se meteram por causa de querer ter territórios no país dos outros. Longe disso. Por exemplo, a Holanda e a Inglaterra brigaram, brigaram e acabaram trocando Nova York e Suriname.
Sim, até outro dia, Suriname era uma colônia holandesa (ficou independente em 1975), ou seja...
3. A Holanda teve uma colônia na América do Sul (e não estou falando do Brasil...)
A Holanda tem uma ex-colônia no norte da América do Sul, lá no meio das duas Guianas: o Suriname.
Ele ficou independente nos anos 70, mas até hoje o holandês é uma das línguas oficiais do país. Ou seja, há um país que fala holandês fazendo fronteira com o Brasil!
Por causa dele, o holandês é uma das línguas oficiais da União das Nações Sul-Americanas, a UNASUL, projetada nos moldes da União Européia. Papo sério, existe mesmo essa união, tem até artigo na Wikipedia e tudo.
Certo, mas e a troca de Suriname com Nova York e a treta com os ingleses? Como foi? Assim:
4. Nova York foi fundada pelos holandeses (e trocada com os ingleses pelo Suriname)
Yeah, o orgulho ianque é criação original batava (leia aqui sobre outras invenções holandesas que mudaram o mundo). Os holandeses vieram dar banda pela América do Norte no século XVII e em 1624 fundaram a colônia de Nieuwe-Amsterdam, Nova Amsterdam.
A coisa ia bem até que os ingleses vieram com quatro fragatas e disseram "obrigado pelo trampo, agora, fora!" O governador holandês deu o pira e deixou a cidade pros ingleses. Era o prelúdio da Segunda Guerra Anglo-Holandesa.
Nessa guerra os holandeses retaliaram a perda de Nova Amsterdam capturando o Suriname, na época um valioso produtor de açúcar em mãos inglesas.
O pau continuou até que os holandeses entraram rio Tâmisa adentro, afundaram uma pá de navios ingleses e saíram rebocando de volta pra Amsterdam a nau capitânea da Marinha de Sua Majestade (a HMS Royal Charles) — que vexame, seus ingleses!

(Hoje em dia você pode ver o brasão que ficava na popa do navio no Rijksmuseum em Amsterdam. É um dos meus museus favoritos na Holanda).
Depois dessa os ingleses se renderam... hã, desculpe, inglês não se rende. Depois dessa o ingleses concederam um empate técnico e assinaram um tratado onde concordavam em deixar a coisa como tava e manter Nova Amsterdam e Suriname com seus donos atuais...
Depois da Terceira Guerra Anglo-Holandesa a troca foi considerada final e os holandeses, que tinham retomado Nova Amsterdam, aceitaram a troca com o Suriname definitivamente e devolveram a cidade.
Esse pequeno erro de julgamento batavo é fonte de grande divertimento pra nós estrangeiros até hoje: quando um holandês vier te falar todo orgulhoso da tomada do HMS Royal Charles, enchendo seu ouvido com o papo de que "não, porque nós demos uma tunda nos ingleses dentro do próprio Tâmisa e blablabla..."
Basta responder: "Me diz uma coisa, Suriname por Nova York, negocião, hein?"
Corra.
(Mas, se você quer sacanear mesmo um holandês, o melhor jeito é usar o hino nacional. É simples, veja o próximo item.)
5. O Hino Nacional holandês é o mais antigo do mundo.
Tá, os japoneses contestam esse título, dizendo que a letra do hino deles é mais antiga e que o hino holandês, esse moleque, deveria parar de roubar fruta no quintal dele e tal.

Mas apenas a letra do hino nacional japonês é mais antiga, e o hino completo é o que vale (especialmente segundo os holandeses). Só que uma das coisas curiosas de se ter um hino tão antigo é que a letra tem partes que... digamos... não envelheceram bem. Explico.
A letra é um poema em primeira pessoa, narrado pelo personagem histórico Willem van Oranje, patriarca da Holanda. Tanto que é daí a origem do nome do hino: Het Wilhelmus, algo como, sei lá, "O Guilhermino". (Willem é Guilherme em português.)
Willem foi o cara que iniciou a Guerra dos 80 anos, a guerra de independência contra a Espanha, que dominava a Holanda na época! Ele inclusive foi assassinado por um fã leal do rei espanhol, que havia colocado um preço na cabeça de nosso revoltoso herói. A família real holandesa descende dele, enfim, o cara é a essência da holandesice patriótica.

Certo? Então logo no começo, a letra do hino diz: "Guilherme de Nassau eu sou / de puro sangue alemão..."
Jesus! Deixa eu explicar uma coisa sobre a birra da Holanda com a Alemanha: é forte. Países vizinhos, línguas parecidas, rivais no futebol...
Sempre que conto isso, me perguntam "a birra da Holanda com Alemanha é que nem a de Brasil e Argentina?"
Eu respondo: "é bem parecida, só que como se a Argentina tivesse invadido o Brasil, derrubado o governo eleito e instaurado uma ditadura de ódio racial, bombardeado São Paulo até a obliteração completa e depois passasse a mandar cidadãos brasileiros pra serem exterminados sistematicamente em câmaras de gás. Tirando isso, é igualzinho."
Ok, hoje em dia os holandeses dizem que não tem nada a ver a história, que isso "foi antes do meu tempo", agora é só futebol... maaasss.... a real é que a Segunda Guerra não foi bolinho, os nazistas bombardearam cometeram inumeráveis crimes hediondos, e essa parte do hino passou a soar muito estranha desde então.
(No vídeo acima: a história deixa marcas, a gente admitindo ou não).
Tão estranha que um monte de gente começou a argumentar que, na verdade, não é isso que a letra diz. É simples de ver: chegue prum holandês e pergunte sobre o fato de ele cantar "sou de puro sangue alemão" antes de um jogo Holanda e Alemanha.
Ele vai ficar meio alterado e começar a te contar que na verdade, usar a palavra holandesa pra "alemão" (duits) no hino é um erro de quando modernizaram a grafia, e o original na grafia antiga (duytsch) se referia à raízes germânicas de um área que incluía a Holanda e bla bla (insira longa explicação histórico lingüística pra justificar que eles não estão todos cantando que têm sangue alemão em seus momentos mais patrióticos).
Quando o holandês estiver no meio desse mini colóquio sobre lingüística germânica do século XVI, pergunte, distraído:
— Vem cá, mas onde que nasceu o Willem van Oranje mesmo?
(Foi na Alemanha).
Corra. Corra muito!
Disclaimer e fontes
Eu sei que história é treco complicado e sempre tem milhões de interpretações e versões. Eu pesquisei muito sobre história holandesa desde que cheguei aqui. Eu sei que minha versão é altamente imprecisa e tendenciosa em vários pontos. Eu fiz de propósito. Isso não é um artigo acadêmico, mas um de entretenimento. Use seu senso de humor.
Eu sei também que a Wikipedia é uma fonte altamente duvidosa—acredite, fui muito além dela, sendo o rato de livros e museus que sou. Porém, é prática e serve como um bom ponto de partida. Por isso indico aqui alguns artigos relevantes:
- http://en.wikipedia.org/wiki/Belgian_Revolution
- http://en.wikipedia.org/wiki/Capital_of_the_Netherlands
- http://en.wikipedia.org/wiki/Het_Wilhelmus
- http://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Bonaparte
- http://en.wikipedia.org/wiki/New_Amsterdam
- http://nl.wikipedia.org/wiki/Nieuw-Amsterdam_(Nieuw-Nederland)
- http://en.wikipedia.org/wiki/Second_Anglo-Dutch_War
- http://en.wikipedia.org/wiki/Suriname
- http://en.wikipedia.org/wiki/Third_Anglo-Dutch_War
- http://nl.wikipedia.org/wiki/Wilhelmus
- http://en.wikipedia.org/wiki/William_the_Silent