Natal na Holanda
No final de 2007 eu ainda estava aqui como turista, usando os três meses a que os brazucas têm direito antes de voltar pro Brasil pra tirar o meu visto de residência. Era o primeiro Natal que passaríamos longe, não da família, mas da família, amigos, do Brasil!
Completamente isolados, ainda conhecendo muito pouca gente aqui, pensávamos o que fazer com os dois dias de feriado em que todos estariam se reunindo sem nós. Poderíamos fazer uma ceia romântica a dois, mas cara, ceia romântica pode-se fazer todos os dias. Resolvemos, como sempre que podemos, pôr o pé na estrada — ou na ferrovia, no caso, e ir viajar nos dias 25 e 26 de dezembro.
Poisé, o Natal aqui é comemorado em dois dias também, mas em dias ligeiramente diferentes da tradição brasileira. Em vez da véspera, os holandeses comemoram o dia seguinte. Eu sei, eu sei, mas é assim, sério. Chamam-se "Eerste Kerstdag" e "Tweede Kerstdag", primeiro e segundo dia de Natal, e compõem a kerstfest. Olha, os holandeses não estão sozinhos nessa.
Os ingleses, e no embalo deles os outros países do Common Wealth, também declaram feriado no dia 26 de dezembro, no chamado Boxing Day, em vez do dia 24.
Os holandeses fazem mais ou menos o mesmo que os brasileiros: num dia passam com uma família, no outro com outra, caso os dois cônjuges tenham família na Holanda, o que é meio raridade por aqui, pelo que eu tenho visto. Se não, dar rolê neste dia também é uma opção popular.
Descontão nos trens holandeses
Com dois dias inteiros à disposição, poderíamos ir um pouco mais longe na Holanda, como Maastricht, bem ao sul, ou Groningen, bem ao norte. A Carla tinha ouvido falar que iria rolar a "Winter City" em Groningen, o que pareceu tentador. Era nosso primeiro inverno fora do Brasil, Groningen tem, em geral, temperaturas mais baixas, pareceu uma boa ir ver um parque temático invernal no nortão da Holanda. Além do quê, é legal falar Groningen. Quer tentar?
Decidido, bora comprar as passagens, estreando meu super mega hiper Voordeelurenabonnement da NS. Não entre em pânico, eu explico num segundo. NS é a compania de trens da Holanda. Viu, não foi tão ruim né? Agora, respire, Voordeelurenabonnement (literalmente algo como "assinatura de horário econômico") é o the off-peak discount pass, ou seja, cartão de desconto pra viagens fora do horário de pico.
É uma das maneiras de economizar na Holanda, e é um lance muito legal. Você paga 55€ mais uma foto. Por um ano, você tem um cartão que permite você ter 40% de desconto pra você e mais três companheiros, em todas as viagens pela Holanda, desde que fora do horário de pico, ou seja, durante a semana depois das nove da manhã e o fim de semana todo. Se vale a pena fazer? Faz a conta. Em tarifas de hoje, eu mais a Carla indo pra Groningen de Amsterdam num dia e voltando no outro, sai €57,40. Se usar o cartão, nós dois pagamos €34,40, ou seja, 23€ a menos. Em uma única viagem já recuperamos mais de 40% do investimento inicial de 55€, e ainda teríamos o ano todinho pra usar. E se fossem três pessoas viajando, a economia seria ainda maior.
Cuidado pra não ir parar na Dinamarca.
Na volta da estação, com as passagens no bolso, tive a moral de quebrar a minha bike e meu orgulho em um acidente estúpido envolvendo o trilho do tram. Isso meio que deu uma desanimada, ainda mais que, logo depois, a Carla caiu bem doente, completamente gripada. Show de bola. Neste estado lastimável foi que pegamos o trem no dia seguinte, dia de Natal. Um trem lotado, aliás. Mas estávamos bem sentados, pois embarcamos em Amsterdam, meio que no começo da viagem. O que não durou muito, vejam.
Veio o cobrador (em holandês, um falso cognato: conducteur é cobrador/fiscal de passagens), pediu as nossas passagens. Querendo impressionar a esposa, resolvi me meter a fluente em holandês com apenas dois meses de Holanda, e fingi que entendi o que o cara falou, entreguando os bilhetes (só podia ser, né?).
O cara, olhou, e disse:
- RrurghRraachtsrrurChRRroninguãm. Raarrorrem?
Ops. Hora do "sorry?" que joga os holandeses em modo bilíngüe.
- Seu bilhete está certo, mas você sabe que este vagão não vai pra Groningen, né?
- Não?
- Não.
- Este não é o trem pra Groningen? How come?
- É. Mas este vagão se separa do trem e segue outro caminho mais pra frente. Você tem de trocar de vagão na próxima parada.
Agora, essa era muito nova pros caipirões aqui. Trocar de vagão, tão tá. Ainda bem que o cobrador nos avisou. Um colega nosso, em uma outra viagem, ignorando essa peculiaridade de viagem ferroviária, acordou em outra cidade, certa feita. Nós acertamos o vagão na próxima parada, mas perdemos o lugar. Tivemos que sentar separados e espremidos, e separados, quebrados e espremidos chegamos em Groningen.
A cidade abandonada
Ao nos afastarmos da estação ferroviária começamos a notar, assim, uma conspícua ausência de, como direi, pessoas. A cidade estava deserta. Vazia. Onde, onde está todo mundo?
Tinham nos dito que Natal é coisa de família pra holandês, e, duh, pra todo mundo, pensamos. Mas veja, é uma cidade universitária. A estudantada que forma um bom quarto da população quer mais é distância da faculdade, e a cidade esvaziou. Os que ficaram se enfurnaram dentro de casa com a família e não se via viva alma nas ruas. O que tornou a aventura de achar um pico pra almoçar mais difícil do que pensávamos. Tudo fechado.
Eventualmente achamos um restaurante aberto (com fotos do mesmo lugar quando a cidade foi liberada na Segunda Guerra por tropas canadenses. Ok, divirtam-se Carol e Gus. Foi o Canadá que liberou a Holanda 🙂 ), e saímos pra fazer check-in no hotel e ir em busca do Tourist Office (sigla em holandês: VVV, toda cidade tem um, procure).

VVV fechado. Afinal, é Natal, certo? Digo, quem seria doido de ir fazer turismo num feriado? Nós é que não. Fomos explorar a cidade por nós mesmos. O que há pra ver em Groningen?
Bem há o Vismarkt.
Animador. Tem a torre da Martinikerk.
Ingressos pra Martinikerk no... VVV! Isso, no Tourist Office, fechado. Hm. Há também um museu, que abriria dia 26. Nos restava aproveitar a super hiper mega... WINTER CITY!
Natal na Winter city
Ela ficava na maior praça de Groningen, o Grotemarkt, onde há também a prefeitura (city hall). Chegando lá, notamos que a Winter City estava mais pra Winter Village, ou Winter 3 pequenas cabanas. Consistia de:
- 01 Roda Gigante
- 01 Árvore de Natal
- 01 pista de patinação
- 03 casotas pré-fabricadas vendendo chocolate quente, batata frita e ingressos pra pista de patinação.
É isso aí. Bem-vindo à Winter City.
Agradecemos na noite fechada (anoitece cedo), e fomos testar o chocolate quente, causando espécie nos locais. Quando dissemos que éramos brasileiros, e estávamos lá, no Natal, no meio daquela cidade vazia no extremo norte da Holanda, poderíamos muito bem dizer que éramos extra-terrestres e queríamos ver o líder deles.
Foi uma conversa divertida, e o chocolate estava gostoso. Pra completar a bizarria, a Carla tirou o Macbook dela da mochila e caçou uma rede wi-fi aberta pra ligar pro Brasil. Ou Marte, na cabeça dos locais.
Em algum momento da noite, a Carla descobriu que eu nunca havia andado de roda gigante.
- Nunca?!
- Nunquinha!
- Vamos resolver isso mas é já! - e pegou minha mão e fomos correndo acordar o tiozinho de 117 anos que ficava no caixa, que por sua vez acordou a Roda Gigante exclusivamente para nós. Ficamos rodando na noite fria de inverno, olhando Groningen de cima, com a linda e iluminada árvore de Natal lá embaixo. Bem no alto, nos desejamos Feliz Natal e brindamos a noite com um beijo.
Fim de noite no pub
Voltando pro hotel, ainda restava um problema: comer alguma coisa. E beber, claro — até onde eu saiba pode misturar álcool com paracetamol. Se não podia, ups. Andamos pelas ruas desertas (as únicas almas pingadas pareciam estar na Winter City), torcendo pra ver qualquer coisa com cara de bar ou restaurante aberta. Ou qualquer coisa aberta.
Já havíamos desistido de bater com a cara na porta das indicações do Lonely Planet, quando, bem perto do hotel, notamos um muy mal iluminado pub. Poderia estar aberto. Demoramos um pouco pra decidir se estava ou não. Parecia estar. Será? Empurrei a porta, abriu.
Dentro do pub, uma única luminária jogava uma luz fraca e amarela no ambiente. Três caras e um cachorro nos ignoraram. O balconista, um holandês gigantesco, quase gordo e muito alto, cabelos compridos e ensebados caindo sobre um avental idem, também. Ah, que se dane, eu queria algo pra beliscar e uma cerveja. Sentamos.
Depois de algum tempo o balconista veio até nós. Perguntei se ele tinha algo pra comer. Ele sorriu sinistramente, puxou uma faca do avental ensebado e disse:
- Agora temos.
Não, não, não foi isso que aconteceu. Ele respondeu apenas:
- Não.
- Nada?
- Nada.
- Um salgadinho? Qualquer coisa pra beliscar enquanto tomamos uma cerveja?
- Ah, bom. Sim, posso fritar uns bolinhos de carne.
Dei de ombros. Não queria nem saber de onde vinha a carne. Manda bala. E uma Guiness. O cachorro nos olhava com alguma curiosidade. Os outros três fregueses não. Os bolinhos vieram, e até que troquei uma idéia com o balconista, também absolutamente surpreso de ver um casal de brazucas turistando justo no pub dele, em Groningen. Essa foi a nossa ceia de Natal. Dali, cama.
O segundo Natal
Dia seguinte resolvemos vagar mais um pouco pela cidade. Andando pelo imenso vismarkt, comecei a me sentir naqueles filmes apocalípticos onde todo mundo morreu ou virou zumbi. De puro tédio comecei a gravar filminhos engraçadinhos com este tema, e não, não irei publicá-los.

Mas a glória dos filminhos foi quando descobrimos na frente da estação ferroviária um bicicletário gigante que permitia subir em seu teto, distante uns 4 metros do chão.
- Estamos aqui transmitindo direto do topo de uma das mais altas montanhas da Holanda, em frente à estação de Groningen...
- A subida pela rampa foi árdua, mas somos os primeiros a atingir o topo na fantástica altitude de zero metros acima do nível do mar, já que a Holanda tem altitude negativa...
- Deu um trabalhão, mas a vista compensa:

- Os holandeses não conseguem chegar até aqui em cima devido à ausência de oxigênio em tremendas altitudes como esta, mas nós das terras altas do Brasil já nos acostumamos com altitudes de zero metro.

E por aí fomos, observados por um holandês e seus dois filhos enquanto fazíamos a palhaçada em público. Mas o mais legal da rampa do tal bicicletário era uma estátua de um cara apoiado na bunda de um cavalo.
Sério. Ah, vejam vocês mesmos:

O Museu e o fim da viagem
Aproveitamos o resto do dia pra visitarmos o museu de Groningen, onde além de vermos o excelente acervo de arte moderna, ainda vimos uma lindíssima exposição sobre arte relacionada ao folclore russo. Aprendemos um monte e acabamos comprando o livro-catálogo da exposição. Se você se pilhar um dia em Groningen, vá na certa, que o museu vale.
E no fim do dia, tomamos mais uma cerveja e observamos a cidade ressucitando, enchendo a estação, as praças e as ruas, a estudantada voltando, enquanto nós íamos. Tivemos um gostinho de porque amigos nossos recomendaram tanto a cidade. Ainda volto pra lá, mas desta vez sem a cidade estar fechada pra balanço.

Fotos
Se você quiser, como é tradicional aqui no Ducs, pode futricar nosso ábum no Flickr com as fotos.