Eu tenho uma larga tradição pessoal de me trancar (pra dentro e pra fora) em lugares. Oh, sim, mesmo depois de adulto não perdi a forma e já consegui me trancar no banheiro sem ninguém em casa pra me resgatar. Eu tinha 18 anos e morava com meus pais, que estavam viajando. Um vizinho me salvou de uma noite dormida no azulejo, se você quer mesmo saber. Acho que até hoje esse vizinho, de vez em quando, fica de olho parado no meio da janta e solta uma risadinha incrédula enquanto sacode a cabeça ao responder "nada, nada" pra sua esposa quando ela pergunta "que foi que você tá pensando, amor?"
Aqui na Holanda, a primeira providência que tomamos assim que nos vimos sozinhos como responsáveis por uma casa em um país estranho foi nos trancar pra fora do apartamento. Fantástico. Após alguns minutos de pânico diante da porta que não abria, no frio holandês, finalmente me deu uma luz e resolvi girar a chave ao contrário. Abriu. Comoção generalizada. Indiferença completa dos vizinhos. Estávamos na Holanda a menos de uma semana. Em Barcelona, batemos nosso recorde e nos trancamos em menos de dois dias - embora dessa vez não foi totalmente culpa nossa.
Estávamos visitando o Park Güell, projetado por Gaudí. O Park Güell faz parte do Patrimônio da Humanidade da UNESCO "Obras de Gaudí" e foi inicialmente projetado como um conjunto habitacional, uma "Cidade-jardim". O projeto de vender casas ali falhou miseravelmente, e hoje é realmente um parque público muito legal de ser visitado. Na entrada, ficam duas casas louquísimas, projetadas para serem tipo uma recepção do empreendimento. Hoje uma é um museuzinho dedicado ao parque e outra uma lojinha armadilha de turista. Dêem um bico:

Na esquerda o museu, na direita a lojinha. Encorajados pela placa que dizia que eles fecham as 15h00 no domingo (eram 14h20 de um domingo, veja só) resolvemos entrar no museuzinho.
Ficamos lá até umas 14h35 e descemos pro térreo. Tudo apagado. Mau sinal. Porta fechada, trancada, todas as janelas fechadas, ninguém na casa, estávamos presos no museu. Péssimo sinal. Péééééééssimo sinal. Demoramos um tempo no escuro assimilando a idéia de que a mulher da recepção simplesmente fechou o museu no domingo antes do horário previsto e foi embora sem checar se havia saído todo o mundo e que estávamos agora trancados na Espanha. Trancados. Na Espanha. Domingo. Os turistas lá fora continuavam indo e vindo, aquela mistura de línguas, o solzão dardejando seus 30 graus do verão espanhol e nós... trancados. Presos. Esquecidos no museu.
- HELP! HEELP! HEELP! WE are LOCKED inside, please, HELP!
A Carla gritava e a turistada que via pelo visorzinho da porta olhava pra nós, olhava pros lados, sorria de canto e saia de fininho, ignorando nossos apelos. Eu me juntei ao coro:
- Hey, man, I'm serious! It's for real, we are LOCKED INSIDE, please, HELP!
Finalmente um grupo de turistas acreditou na gente e se aproximou. Contamos nossa triste situação, pra completo espanto deles. Resolveram ver se chamavam alguém da administração do parque. Dois ficaram com a gente, querendo saber, mesmo, como havíamos nos metido ali. Um comentou algo em holandês com o vizinho. Eram holandeses, de Amsterdam, ainda por cima. Santos holandeses, que acreditaram em nós. Exclamei:
- Oh, Nederlanders!
- Bent u ook Nederlanders?
Nops. Brasileiros, meu senhor. E presos. Quase disse que éramos argentinos, só pra passar o mico adiante. Nisso voltou a menina do grupo deles. Sem administração do parque. Nobody. Serve a moça da lojinha que fica na outra casa? Há de servir. Ela veio. Não tinha a menor idéia do que fazer. Não conhecia a pessoa que cuidava do museu. Será que poderíamos procurar algum número de telefone ali dentro, pra ela ligar?
- Mas está totalmente escuro aqui dentro!, disse a Carla.
Logo ela teve uma brilhante idéia: saiu tirando fotos com flash pra se orientar através das fotos. Você não adora quando a realidade é substituída, assim, sem aviso prévio, por uma comédia pastelão? Finalmente a Carla achou um número de telefone e passou pra moça da lojinha. Ela tirou o celular e ligou pro número. E, no mesmo segundo, começou a tocar um telefone no escuro, bem ao nosso lado. Eu podia ouvir as risadas enlatadadas da claque ao fundo. Só faltou uma tiradinha espertinha colocada pelos roteiristas:
- Puxa, e eu pensava que a armadilha de turista era a lojinha ao lado! [LUZ ACESA: RISADAS]
Mas não era engraçado na hora e continuávamos presos. A moça da lojinha gaguejou:
- Eu... huh... vou ligar... pra... alguém.
- Hey, cortou a Carla, não vá embora, não nos deixe aqui!
- NÃO, não, claro que não, eu vou... hã... lá e já volto. Tentar achar alguém!
- Moça, faz favor, liga pra emergência, chama a polícia! - Esse era eu.
- Claro. Vou tentar achar alguém e se eu não conseguir, eu ligo pra polícia.
- Não, não, liga pra polí...
E ela se foi, nos deixando sozinhos. No escuro. Nisso eu pensei: mas está escuro pra cacete aqui, será que eu acho uma lâmpada, eu não consigo achar um interruptor. Fiquei tateando até que achei uma janela fechada.
Será que abre?
Abriu. O vidro estava trancado. Será que abre?
Abriu.
Ar fresco.
A Carla, VAMOS PULAR! Eu, MAS É CLARO! Ela se encarapita no parapeito e...
- É muito alto!
E volta. Eu penso, mas que se foda, é por ali mesmo que vamos sair.
- Deixa eu tentar.
Olho e a janela está a... tipo... uns 160 centímetros do chão. Sempre me esqueço que o conceito de alto da Carla é diferente do meu (ela tem um metro e cinqüenta e cinco). Vou primeiro, pego as mochilas, depois a Carla e estamos em liberdade. Revoltado, tiro uma foto da placa com o horário de fechamento. Eram, naquele minuto, três horas da tarde em ponto.
Resolvemos aliviar o estresse na praia de Barcelona, coisa que havíamos feito, e faríamos, todos os dias. Sabe como é, né... "meu sorvete não está muito gostoso! Praia pra nos consolar. Fomos trancados no museu! Praia pra nos consolar. A cerveja está médio gelada... praia pra..."
E quem diria que meu chapéu de Indiana Dude não era só enfeite?