Quando aqui chegamos, entramos no esquema típico de turista deslumbrado. Primeira vez fora do país, o mítico "exterior" finalmente deixava de ser uma abstração para virar algo concreto. O mundo não era, afinal de contas, um grande show de Trumam armado só pra enganar os Ducs (talvez seja, mas a produção ficou mais complexa agora). Estávamos, sem saber, na primeira fase do expatriado de primeira viagem, o deslumbramento.
Elogiávamos tudo pros holandeses, para receber em troca uma certa desconfiança. Olha, diziam, nem é essa maravilha toda. Aliás, eles não conseguiam nem entender porque alguém gostaria de vir morar, assim, voluntariamente, num ex-fundo-de-lago gelado, nublado, úmido e lotado como os Países Baixos. Até hoje não entendem. Acontece que nós também não entendíamos nada dos holandeses e ignorávamos uma das principais características batavas: reclamar.
Reclamação aqui é esporte nacional, praticado mais apaixonadamente do que futebol e, glup, patinação em gelo (natural!) Pessoa muito entusiasmada pela Holanda só pode ser turista deslumbrado ou estar mentindo, pra não ferir sentimentos. Nenhuma das duas hipóteses vai te deixar bem na fita. Turista deslumbrado é melhor, pelo menos passa com o tempo. Agora, mentir pra não ferir sentimentos é falha de caráter por aqui. Se não gostar de algo, diga. Na lata. Não depois, não por trás, não no seu blogue em outra língua. Diga na cara, na frente e na hora. Eles farão o mesmo, pode acreditar (suspiro - poooode acreditar). Ficou puto, reclame. Na frente. Idealmente em holandês, sem nenhum sotaque, de preferência cheio de regionalismos, mas serve em inglês sim senhor, eles não levam a mal se você é estrangeiro. O patriotismo não é, também, o forte holandês. Tá, evidente, se a sua reclamação for justa, ou ao menos, compreensível - dar uma de racista ou xenófobo já é estupidez o suficiente sem precisar fazer isso no país que te recebe.
Achávamos muito estranho os holandeses nos desmentirem diante de nossas entusiasmados panegíricos. Atribuíamos os desmentidos, chauvinisticamente, à ignorância batava do que se passava no resto do mundo. "Eles não sabem a sorte que têm". Estávamos, sem saber, em pleno choque cultural - uma das coisas mais difíceis de lidar, mas também um dos grandes motivos que fazem morar fora valer a pena. Alguém disse uma vez que aprender uma segunda língua é ganhar uma segunda alma. Ao morar em outro país ganha-se mais do que uma nova língua, aprende-se uma nova cultura.
Cultura é visão de mundo - a realidade é complexa demais pra ser apreendida em sua totalidade. A cultura é um filtro da realidade. Algumas pessoas confundem este filtro com a própria realidade. Outras, mais esclarecidas, estão conscientes da diferença, mas não de que este filtro é apenas um dos infinitos possíveis. Aprender outra língua ajuda, e muito, porém apenas quando começamos a adquirir um segundo filtro é que percebemos a extensão de seu efeito. Nossa cultura está moldando nossa visão da realidade em áreas que nem desconfiamos até tropeçarmos em um ambiente em que esta visão não é a comum e, com isso, sobe para o consciente, freqüentemente de maneira violenta. Bilhões de pessoas vivem por aí, muito do bem, ignorando solenemente um monte de coisas que você jura que é, mais do que o Jeito Certo, o Único Jeito de ver o Mundo. Surpresa.
E surpresa dolorida. Você se sente uma criança, vivendo em um mundo que não compreende, com pessoas usando códigos que você não faz idéia do significado. De repente, você não sabe mais como o mundo funciona. A fase deslumbramento passa e você deixa de ser um turista, as novidades transformaram-se em cotidiano, e antes de tornar-se consciente da extensão e profundidade da influência do filtro cultural, ou às vezes mesmo da sua própria existência, você é obrigado a sobreviver em um contexto no qual esse filtro está obsoleto. Aí começam as reclamações.
Não o mesmo esporte nacional holandês, mas daquele tipo amargurado, impulsionadas, também, pelas saudades que agora começam a apertar. Tudo é pior. O problema é que as coisas não são ruins em si, elas são piores. Há um parâmetro de comparação embutido aí - o seu filtro cultural original. As coisas são piores do que lá. É claro que são - lá o seu filtro funcionava adequadamente e aqui, não. Aqui é preciso criar outro. E o primeiro passo para realizar isto é perceber isto, tornar-se consciente de que cultura é um filtro de realidade, que a sua é apenas uma entre as demais, e que é possível adquirir outras, assim como é possível aprender novas línguas. Até lá, tome reclamação.
Ao dar os primeiros passos na longa estrada da fluência cultural, percebe-se que na verdade algumas coisa são ruins, outras são legais, mas não necessariamente em comparação com lá. O parâmetro pra ruim ou bom é o parâmetro local, de acordo com o novo filtro cultural. É perfeitamente cabível e possível reclamar de coisas daqui — como qualquer um que tenha passado algum tempo convivendo com holandeses percebe rapidamente — mas não simplesmente porque elas são diferentes do Jeito Único e Certo do seu filtro cultural original, e sim porque elas são ruins neste contexto novo. Assim como pode-se comparar culturas diferentes sem o peso do preconceito do filtro único estabelecido como o correto.
Assim como nunca seremos falantes nativos de uma nova língua aprendida depois da infância, a nova cultura não substituirá a original, na qual nos formamos. Nem é este o objetivo - sair da prisão de um filtro pra outra. Se ficarmos tempo suficiente em um país, podemos nos tornar fluentes na nova cultura, e sermos capazes de nos expressarmos nela com grande eficiência (sem perder a capacidade de nos expressarmos na original, do mesmo modo que não perdemos a capacidade de nos expressarmos na nossa língua mãe ao nos tornarmos fluentes em outras). Alguns tornam-se poliglotas culturais, "policulturais", outros fixam raízes em apenas mais uma além da sua, em comum entre eles uma visão de mundo extendida. Morar fora aumenta sua visão de mundo é uma coisa que eu já sabia, mas só fui entender quando efetivamente saí.
Ainda estou bem no começo desta estrada da fluência cultural, laboriosamente escalando os primeiros degraus, nadando no rasinho. Mas alguma coisa eu já eu aprendi: quando um holandês me pergunta, em uma conversa casual, o que eu acho do país deles, eu digo a verdade: que acho lindo, que eu adoro, mas que o clima, me desculpe, mas o clima é uma merda. E é nessa hora que eles abrem um sorriso. Podem levar a sério os elogios que fiz. Estou sendo sincero! Olham pra mim e dizem que é um merda mesmo, reclamam junto comigo um tanto, e saem felizes que eu esteja gostando da Holanda.
E eu estou mesmo. Apesar do clima de merda 🙂