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Neve paralisa e transforma a Holanda no fim de 2010

A neve que caiu em dezembro de 2010 deixou a nevasca do ano anterior no chinelo. Quando cheguei pra morar na Holanda, no inverno 2007/2008, os holandeses reclamavam que não nevava há décadas. Exagero batavo, claro. Mas realmente, nevou pouco naquele inverno e quase acreditei neles.

Nesse inverno, depois da onda de frio a neve veio de novo, e veio a negócios, pra bagunçar o coreto, colapsar o sistema de transportes públicos da Holanda, fechar aeroportos e causar caos generalizado no país. Inclusive, fiquei sem esposa por uma noite, já que ela não conseguiu voltar pra casa — os trens pararam de funcionar ou funcionaram muito mal.

Teve muito prejuízo, eu fiquei com minha esposa grávida fora de casa (ela foi acolhida por uma amiga querida — obrigado, Marina!), mas vamos concordar: o país ficou lindo 🙂

Deixa eu mostrar pra vocês.

Neve em Haia — Noordeinde

Nevou bastante? Me diga você

No total caíram uns 24 centímetros de neve no meu quintal, e eu me dei ao trabalho de medir. Veja só a evolução:

Neve em Haia

Neve em Haia

O vexame da companhia holandesa de trens — NS

Em 2009 a neve que caiu em dezembro badernou todo o serviço de trens, e a companhia holandesa de trens, a NS, passou 2010 inteiro dizendo o quanto ela estava preparada pra esse inverno. Disse, prometeu, planejou um mirabolante "winterdienstregeling" — uma tabela de horários e trajetos especiais pro caso de tempo ruim no inverno.

Funcionaria assim: os trens não andariam seu trajeto todo, mas ficariam fazendo um "pêndulo', indo e voltando em pequenos trechos. Eu fiquei tentando entender a lógica disso: se um trem quebra na ferrovia, ele trava todos os trens que vêm atrás dele, certo? Então, se você faz os trens circularem em trajetos menores, cada um cobrindo um pequeno trecho do trajeto, se um trem quebrar o impacto pro transporte geral será menor... certo?

Além disso, eles gastaram um bom tempo explicando como eles estavam protegendo os trens elétricos da neve (que, tipo, é água e todos nós sabemos que água adora esculhambar uma eletricidade).

A idéia era essa. Dia primeiro de outubro eu recebi um email da NS (eu sou assinante) me avisando que dia 10, um domingão, eles testariam o esquema todo. Sabe, pra não ter surpresas. Então, se você fosse andar de trem no dia 10, prepare-se pra fazer mais baldeações entre as cidades. Pra compensar seu incômodo a NS estava dando desconto (korting) pra todo mundo e, olha só, café e bolo de graça!

De graça! Holandeses (e todo mundo) adoram coisas de graça!

Coincidentemente, nós iríamos pra Amsterdam no dia 10, então experimentamos as baldeações extras, o café gratuito (ruim) e o bolinho na faixa (gostoso). O teste, segundo a NS, foi um sucesso, embora eu vi na TV as entrevistas com os holandeses no dia seguinte:

— O que você acha desse sistema da NS?

— Interessante. Vai falhar miseravelmente, claro. O bolo é gostoso, entretanto.

Holandeses são meio cínicos, heh (um dos motivos de porque eu gosto deles). Cínicos e calejados, porque quando a neve veio, o esquema da NS falhou, mas falhou com glória, pompa, trombetas e coro. Os trens quebraram loucamente, o winterdienstregeling  derreteu qual neve ao sol e o país mergulhou na imobilidade (as estradas também pararam, ajudadas pelo fato de que pneu de inverno aqui na Holanda não é obrigatório, então a moçadinha economiza e não troca — e quando neva, toca andar a 10 por hora. E quando os trens não funcionam, sai todo mundo que pode de carro. Viu a meleca, né?).

Bueno, com o serviço de trem badernado e toda a tabela de horários normal inoperante, todo mundo queria saber que trem pegar, quando ia passar, pra onde baldear pra ir de um lugar a outro. Como fazer?

Ah, não tema, a NS estava preparada pra isso! Ela passou o ano todo dizendo pra você correr pro website deles, que teriam as últimas informações. E foi o que todos fizeram: sacaram seus mobieltjes (celular, em holandês), e acessaram o site da NS.

Que estava fora.

Hmmmm... bom... excelente, NS. Muito bom.

Nessas, eu lendo no twitter o povo da Holanda tentando chegar em casa, relatando atrasos de horas, trens (os poucos que passavam) empanturrados, polícia indo por ordem no tumulto das estações e a Carla tentando chegar em casa. No fim, tinha um site com informações atuais sobre o tráfego na Holanda, trens inclusive (chama Traphic.nl). Embora não fosse a função dele, quebrou um galho na queda da NS.

No fim das contas, o parlamento holandês deu chamada pública na NS, que respondeu pondo a culpa na ProRail (a empresa proprietária econômica da infraestrutura ferroviária da Holanda e responsável pela sua administração, gerenciamento e exploração — a NS opera os trens e as estações), que disse que "como assim? A gente tá junto nessa!", e estão brigando todos até agora. Pediram-se cabeças da ProRail e NS, mas até agora ninguém caiu. Nem a neve, pra sorte de todos.

Caminhada na neve em Haia
Já que o trem não vem, negócio é ir a pé... ou...

O trem parou, mas as bicicletas continuaram rodando

Não foram só os trens e as estradas que travaram. Nas cidades, ônibus e trams (o tram é o bonde) também pararam e aí, quem circulava na neve que descia irada do céu?

Oras, o mesmo que anda o ano todo: bicicletas!

Bike aqui é o ano todo e, nevando ou chovendo o pessoal continua usando a bicicleta (que, aliás, é uma coisa mais holandesa do que esse negócio de tamanco)!

Na neve, o pedal continuou a girar, mesmo que com alguma dificuldade.

O pessoal sempre pergunta como é andar de bicicleta na neve. Bom, obviamente requer atenção e cuidado. Nada de tacar o pé no pedal como se estivesse num velódromo, ou de freiadas súbitas, senão o chão é seu encontro próximo e provável. Eu já vi holandês correndo na descida da ponte com neve caindo. Desnecessário dizer, derrapou na sequência.

(Ah eu tô falando de neve caindo ou recém caída, não de gelo. Gelo é outra divisão. Uma bem mais dolorida.)

Mas de qualquer maneira, considerando como fica o trânsito aqui quando neva, as bicicletas continuam sendo mais eficientes, e o pessoal pedala na maior, inclusive com crianças. Vejamos.

Bike in the snow — The Hague Bicicleta na neve em Haia

Snow - The Hague Bike - The Hague - Snow - night

Bicicleta na neve em Haia The Hague - snow Bicicleta na neve em Hai Bicicleta na neve em Haia

Bicicleta na neve em Haia em frente a um café
Depois dessa pedalada toda, uma pausa pro cafezinho... 🙂

Espere, tem trenó também!

Trenó em Amsterdam Vondelpark

Tá, essa foto foi o ano passado no Vondelpark, mas só porque não fui rápido o suficiente pra pegar alguns exemplos de pais puxando seus pequerruchos de trenó calçada afora. Mas confiem em mim: teve 🙂

Brincadeira na neve: trenó

Em compensação, essa foi em Haia e nesse inverno. Esses dois conseguiram achar uma coisa rara na Holanda: um desnível, e o aproveitaram subindo e descendo com seu trenó enquanto a vovó dava um grande apoio moral (eu ouvi eles chamando-a de Oma, vó em holandês).

Veja mais transportes alternativos na neve.

A mágica da neve

Eu estava na rua quando começou a nevar pela primeira vez nesse inverno, a neve que desencadeou todas essas mudanças. Comecei a ver o mundo ficar todo branco, quando cruzei por uma mãe levando pela mão sua filha de uns 7, 8 anos. A mãe andava apressada, encolhida, mas a guriazinha estava usando um gorro quente, e olhava pra cima, olhinhos brilhantes, maravilhada com a neve que caia.

E eu sabia exatamente como ela se sentia.

No fim, mesmo com a baderna na nossa vida prática, a neve aqui ainda é algo um pouco raro — e sempre mágico por esta capacidade de transformar o mundo sem mudá-lo de lugar.